O silêncio midiático nos conflitos do continente africano
A falta de cobertura vem do desinteresse, desimportância ou pouca visibilidade internacional?
Por Ana Liz Cacciacarro e Elis Gadotti
Em um contexto no qual os preconceitos da colonização se fazem presentes em diversos países africanos, a falta de cobertura midiática internacional suscita questionamentos sobre a disparidade na atenção dada a esses eventos em comparação com outros.
O correspondente da GloboNews na África e jornalista freelancer Vinícius Assis aponta que desafios logísticos e políticos frequentemente limitam a cobertura de conflitos. “Para trabalhar em muitos países africanos, você precisa de uma licença de jornalista, que às vezes é paga e outras vezes simplesmente negada”, relata ele. “A burocracia excessiva e a desconfiança dos governos dificultam a entrada e o trabalho dos jornalistas, além da constante ameaça à segurança”, diz.
Apesar das dificuldades, Assis acredita que é possível melhorar a cobertura dos conflitos na África. Ele sugere que o maior investimento de jornalistas locais e um compromisso com a verificação de fatos poderiam proporcionar uma representação mais precisa e equilibrada do continente. “Há uma certa má vontade das redações do Brasil com o continente africano, a cobertura poderia ser maior e mais específica”, afirma.
A falta de interesse do público também é um fator que contribui para a escassez de notícias. “O engajamento é importante, mas não pode ser o objetivo principal. A responsabilidade social de levar um conteúdo real ao povo brasileiro é fundamental”, destaca Assis.
Já o economista e PhD em Relações Internacionais, Igor M. Lucena, observou que a instabilidade política e econômica da África não é a única razão para a falta de visibilidade na mídia. “Existe uma visão da mídia de focar nos problemas das nações centrais e não nas nações periféricas”, explica. Ele ressalta que regiões como o norte da África e a África do Sul recebem mais atenção do que a África subsaariana.
Lucena também destaca que “os países da África estão em uma situação bastante delicada com o Ocidente”. Ele observa que, historicamente, as ex-colônias de países como França e Inglaterra necessitam de realocação de recursos e reorganização social, demandas que eram priorizadas em tempos de paz. Contudo, a atenção ocidental diminuiu significativamente à medida que as nações se concentraram em seus problemas internos.
Assis complementa afirmando que muitos conflitos têm raízes históricas profundas, intensificadas pela colonização europeia, que impõe fronteiras artificiais e forçou a convivência de grupos étnicos que, por vezes, não se davam bem. “Na Etiópia, por exemplo, as pessoas se orgulham mais da etnia do que da nacionalidade”, ilustra o especialista, a complexidade das disputas que envolvem fatores étnicos, religiosos e econômicos.
A República Democrática do Congo é um exemplo dessa extrema complexidade, com mais de 100 grupos armados lutando por objetivos variados, incluindo o controle de recursos minerais. “O caos é lucrativo para alguns governos e grupos. Um relatório da ONU alertou sobre o envolvimento de organizações criminosas como o PCC (Primeiro Comando da Capital) no financiamento de grupos armados na África”, observa Assis, ressaltando a interconexão global desses conflitos.
A guerra no Sudão, por exemplo, provocou uma crise humanitária grave, segundo declarações da Organização das Nações Unidas (ONU). Apenas 100 dias após o seu início, em abril de 2023, a média diária de mortes atingiu 30 pessoas. Em comparação, a situação na Ucrânia, que perdura 3 anos, mobiliza potências mundiais e recebe maior cobertura midiática, registrou no ápice do conflito uma média diária de 1000 mortes.
À medida que os conflitos na África continuam a desafiar a estabilidade e a segurança na região, surgem oportunidades para abordagens inovadoras e colaborativas. Investimentos em jornalismo local e parcerias transnacionais podem ampliar a cobertura e oferecer uma compreensão mais completa dos desafios enfrentados. Além disso, um maior envolvimento da comunidade internacional, não apenas em termos de assistência humanitária, mas também de mediação e diplomacia preventiva, pode ajudar a mitigar os conflitos antes que eles atinjam proporções mais catastróficas.
Ao reconhecer as raízes históricas e contemporâneas dos conflitos na África, é possível criar um futuro mais pacífico e próspero para a região e seus habitantes.
Conflitos atuais no continente africano:
Somália: O conflito, que começou em 1991, tem causado desestabilização em todo o país, e na fase atual há deterioração do controle substancial do Estado para as forças rebeldes. O nível de violência aumentou em 2022, atingindo o número mais alto de vítimas mortais desde o início da década de 1990, segundo o UCDP (Uppsala Conflict Data Program), um programa da Suécia sobre coleta de dados de violência organizada.
Sudão: A agência da ONU para refugiados diz que uma crise humanitária “inimaginável” está se desenrolando no Sudão. Quase 10 milhões de pessoas foram forçadas a abandonar suas casas desde o início da guerra, em abril de 2023. A principal causa foi uma reforma na segurança do país, por conta dos rebeldes.
Nigéria: A Nigéria enfrenta conflitos de ordem religiosa e disputas por recursos naturais. Na região norte do país, concentram-se muçulmanos; na região sul, cristãos. O embate entre essas duas ordens religiosas já deixou milhares de pessoas mortas desde o ano de 1953.
Além desses conflitos relatados, há outros acontecimentos na República Centro Africana, Moçambique, Etiópia e Congo.