Dia da Consciência Negra: Um retrato de resistência e musicalidade
Na última quinta-feira (14), a Revista Vulpes conversou com Katiane Silva sobre o significado do dia 20 de novembro
Texto por Isabela Torquato
Na vida movimentada da Zona Leste de São Paulo, entre o ritmo dos trabalhadores e o compasso do samba, vive Katiane Viviane da Silva, ou simplesmente Katiane Silva, como é conhecida nos palcos. Parte de uma equipe administrativa numa concessionária durante o dia e cantora a noite, ela equilibra a rotina de mãe solo, trabalhadora e artista preta da Tiradentes. Sua trajetória ganha ainda mais força neste mês de novembro, quando sua história ecoa como mais um símbolo no Dia da Consciência Negra, que, para Katiane, é um dia de existência.
“É um dos marcos que faz a gente repensar. Na verdade, o Dia da Consciência Negra devia ser todos os dias, né? Ele representa, para mim, liberdade, sabe? Eu posso sair com o meu turbante em qualquer dia, mas, nesse dia, eu posso sim me vestir como uma mulher afro-brasileira. Então, representa muito para mim. Não deixa de ser um dia de sofrimento, se a gente for olhar uns anos atrás, a tudo o que os nossos antepassados sofreram. Mas também é um dia de muita resistência, um dia de resiliência”, explicou a cantora.
Nascida em uma família de músicos, Katiane via seu irmão, com um cavaquinho em mãos, puxar as primeiras notas que moldariam sua trajetória. Sem preparo técnico ou experiência, as sessões de ensaio na lavanderia da casa da mãe foram o ponto de partida de uma carreira que cresceu junto com ela. Primeiro como backing vocal, depois como protagonista, Katiane se moldou ao som do samba raiz. Aos poucos, os encontros informais deram lugar a apresentações em comunidades de samba, como a União Samba Clube, o primeiro lugar onde a sua voz começou a se destacar.

Katiane Silva animando o público ao redor da roda – Créditos: Isabela Torquato
Há 15 anos, ela ingressou na comunidade pouco antes de ter a sua filha. Lá, mensalmente, mesclavam arte e solidariedade em ações sociais, distribuindo cestas básicas, enquanto o samba unia as famílias. Em sua jornada com o União Samba Clube, houve um episódio especial que moldou sua visão sobre o poder da música. Ao cantar Espelho, de João Nogueira, pela primeira vez, ela sentiu a emoção de homenagear seu pai e irmão, que já haviam partido, enquanto segurava a filha recém-nascida. A experiência foi tão transformadora que o público, em lágrimas, conseguiu sentir a mesma emoção.
“Eu fiquei com a voz bem embargada, mas aí, quando eu terminei de cantar e abri os olhos, a banda tinha acabado a música. As pessoas começaram a gritar, tinha gente chorando. E foi uma gritaria só! Foi aí que eu falei: ‘Meu Deus, acho que dá para tocar o coração das pessoas, né? Quando você coloca o sentimento’. Então, esse foi um dos momentos principais”, relembrou Katiane.
O clube começou a crescer, ficou sem espaço e também passou por mudanças organizacionais que fizeram Katiane mudar seu caminho para algo diferente, um caminho próprio. Assim, com muita dedicação, nasceu o seu projeto solo, que levou a sua voz a espaços que iam de bares locais a grandes eventos em São Paulo.
“Eu passei a ter uma banda que era a ‘Katiane Silva e Firma Batucada’. Com a Firma, eu fui me apresentar em alguns lugares: no Parque de São Jorge do Corinthians, em vários bares aqui da Zona Leste, bares grandes ou um pouco menores”, compartilhou a cantora.
Seis anos depois, Katiane deixou o projeto. Hoje, além do seu projeto pessoal, ela integra outros quatro projetos com a sua voz: Mafuá do Samba, Samba de Gueto, Samba Merece Respeito e a Sociedade Rosas de Ouro. A última é uma escola de samba que, inclusive, vai comemorar o Dia da Consciência Negra com um evento da forma que sabem: cantando e sambando.

Katiane sorrindo para a câmera – Créditos: Isabela Torquato
A vida dupla entre o expediente e os projetos musicais é movida pelo sonho de viver exclusivamente da música, mas é uma rotina exigente. Os sambas demandam dias e horários diferentes da agenda de Katiane. O Mafuá, por exemplo, acontece toda quinta-feira à noite; já os outros, acontecem aos finais de semana, sem contar a época de Carnaval com a Rosas de Ouro. O trabalho na empresa de veículos é o sustento dela e da filha, que ajuda mais cuidando da casa. Mesmo diante do cansaço, a artista encontra motivação na liberdade que o samba proporciona e na responsabilidade de inspirar outras mulheres negras e mães solteiras a não desistirem.
“Hoje, eu posso falar que gostaria de viver da música, sim. E, por isso, essa correria maluca. É a busca de um sonho mesmo. Eu acho que ninguém acaba vivendo, principalmente de música ou de qualquer outra profissão, se você não for atrás, se você não se dedicar. Claro que vai sobrecarregar, mas eu acho que faz parte do crescimento”, esclareceu Katiane.
A estrada do outro lado já desafinou algumas vezes. Nos empregos que já teve, Katiane enfrentou comentários sobre o cabelo black ou reações de surpresa ao verem uma mulher negra liderando rodas de samba. Além disso, um diagnóstico de hidrocefalia a afastou por quatro anos da música, forçando-a a encarar a fonofobia, o medo paralisante de sons. A artista descobriu essa condição após desmaiar no caminho do trabalho; as enxaquecas e o esgotamento por estresse eram indicadores que ela não sabia. Após um período de tratamento, ela retornou aos palcos, provando que o samba, que diz ser uma fênix, lhe oferecia renascimento e força para continuar.
Para a sambista, a música é mais do que um sonho de profissão: também é um espaço de liberdade, reconstrução e voz. Influenciada por figuras como Jovelina Pérola Negra e Clementina de Jesus, ela se inspira em mulheres que desafiaram preconceitos em um cenário predominantemente masculino. A representatividade que ela carrega em suas apresentações é resultado da luta de gerações anteriores por igualdade racial e de gênero.
A celebração da negritude não se limita a um dia, mas reverbera em sua criação, no dia a dia, ao ensinar a filha a valorizar suas raízes e lutar por um futuro. É mostrar que ela pode fazer uma faculdade, aprender novas línguas, viajar em intercâmbios e mais. É uma geração ensinando a outra. Por isso, Katiane deixa a figura feminina principal para o final:
“Tem uma senhorinha, que tem 72 anos, a Dona Tuti, que me ensinou, ao lado do meu pai, e que me ensina até hoje que não podemos ter vergonha do que a gente é e saber o que é nosso”, disse a cantora sobre o que aprendeu com a sua mãe.
O samba e o dia 20 de novembro, assim como a história de Katiane, ou das outras milhares “Katianes” que existem, resistem ao tempo e aos desafios, mostrando que a valorização da cultura e da história brasileira é um pilar essencial para a construção de uma sociedade rica — e não apenas de bens materiais ou dinheiro, mas de consciência.
